sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Sobre "Via Sacra".

Sobre "Via Sacra"  "Via Crucis"


Entre os comentários sobre o filme feitos depois da exibição, devo me limitar aqui a discorrer sobre aqueles referentes à Máscara.

Foi dito que a Máscara seria o rosto que exprime o horror diante de uma cidade desumana, o gesto de recusa diante da miséria e do deserto que, sob todos os aspectos, constituiriam São Paulo até mesmo nos seus mínimos detalhes.
Ainda, que seria o Coro comentador que se silencia em horror – o que não deixa de ser um comentário.
A aparição da Máscara demarcaria blocos dentro do filme, respondendo com a mesma expressão de horror diante das diversas faces abjetas da cidade. Foi dito que sua expressão muda conforme ao que ela reage, isto é, a percebemos de forma diferente em conformidade com o que foi exposto à nos anteriormente (as ocupações irregulares, os prédios ainda em construção, os condomínios de luxo, ...). O mítico "Efeito Kuleshov" foi citado.

Defenderei outra interpretação aqui.

Desde a primeira aparição, não percebi a Máscara como uma face humana expressando o horror, mas sim como a própria face do Horror, isto é, o Horror encarnado. Possivelmente isso se deve aos próprios traços da Máscara, com suas orelhas pontudas, mas também pela própria maneira como ela é concebida: uma face horrível e imóvel que, enquanto máscara, esconde algo – ou que "nomeia o inominável", tornando possível para nós, seres humanos mortais, olhar para algo que de outra forma nos provocaria uma visão insuportável, ou apenas impossível de ver com nossos limitados "cinco sentidos".
E, dado o aparecimento repetido da mesma face com a mesma expressão, excluo a ideia do "comentário ao horror" pelo fato de que seria um horror equivalente. O filme rejeitaria, dessa forma, em mesmo grau, gênero e número os diversos aspectos da cidade. Mas, estando as diversas facetas da cidade trabalhadas e discriminadas, entendo como ilógico (seguindo o percurso discursivo do filme) dizer que a Máscara viria para igualar tudo aquilo mostrado (ou denuncia) pela ordenação das imagens, como também pelo som, sob um mesmo gesto. A lógica da equivalência é a lógica da mercadoria. Quando tudo pode ser medido e pesado para, abstratamente, se equivaler, os diversos detalhes são perdidos em prol da obtenção de um valor; tem se então uma simples comparação quantitativa e não qualitativa. E eu não vejo essa tentativa de recusa da cidade de forma tão hegemônica – apesar de isto poder ser dito, em alguns momentos, quando levado para pensar a constituição dos blocos menores do filme (por exemplo, quando a imagem da ocupação de um prédio é exibida logo antes da imagem de uma ocupação irregular e de uma abrigo construído embaixo de uma ponte).
Assim, a Máscara apareceria como o ponto onde tudo se encontra, como aquilo que está sempre presente mesmo nos mais variados aspectos da cidade; como aquilo que está por trás de tudo – alguém poderia dizer o sentido por trás de tudo. Assim, isso ressaltaria o caráter da Máscara enquanto máscara da cidade: a face concretamente representável de todo o Horror. A máscara é a face do demônio que a cidade verdadeiramente é. (Não quero aqui dizer que o documentário demoniza a cidade – na pior acepção deste termo. A cidade não é "malvada", a cidade é um grande organismo que desumaniza e se vale do sacrífica dos seus servos para funcionar e para se constituir).

Ginsberg conta que quando estava escrevendo a segunda parte de seu poema "O Uivo", estando sob o efeito de alucinógenos, ele viu a face de Moloch, o antigo deus pagão que sempre requeria sacrifícios humanos em seus rituais para apaziguar sua ira, no prédio de escritório que ficava de frente para seu apartamento.

trecho:

What sphinx of cement and aluminium bashed open their skulls and ate up their brains and imagination?

Moloch! Solitude! Filth! Ugliness! Ashcans and unobtainable dollars! Children screaming under the stairways! Boys sobbing in armies! Old men weeping in the parks!

Moloch! Moloch! Nightmare of Moloch! Moloch the loveless! Mental Moloch! Moloch the heavy judger of men!

Moloch the incomprehensible prison! Moloch the crossbone soulless jailhouse and Congress of sorrows! Moloch whose buildings are judgement! Moloch the vast stone of war! Moloch the stunned governments!

Moloch whose mind is pure machinery! Moloch whose blood is running money! Moloch whose fingers are ten armies! Moloch whose breast is a cannibal dynamo! Moloch whose ear is a smoking tomb!

Moloch whose eyes are a thousand blind windows! Moloch whose skyscrapers stand in the long streets like endless Jehovas! Moloch whose factories dream and choke in the fog! Moloch whose smokestacks and antennae crown the cities!

(...)

E de forma parecida como a representada por Ginsberg, a Máscara é esse deus demiurgo que acolhe todos os diversos aspectos do Horror sob uma mesma face. Aquele que não traz nada a não ser a destruição e a miséria, a morte e o sofrimento. Aquele que requer os mais altos sacrifícios em troca da suas calmaria temporária.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Travelling de Kapò?

Me reencontrei hoje com uma "cena abjeta".

Há um vídeo famoso onde três jovens matam um homem de maneira brutal – e é filmado pelos próprios!

Bom, vou me deter a um momento do vídeo:

Após o desferimento de um golpe violento contra o corpo agonizante da vítima o "cameraman" reenquadra em close o corpo mutilado.


Bom, eu sempre tive alguma dificuldade para explicar a questão do travelling dessa cena – apesar de concordar inteiramente com a crítica feita aos "parques de diversão do holocausto", às "colônias de férias-campo de concentração". Ou seja, a crítica da representação banal, leviana, suportável dos holocausto – o insuportável.

Mas, faltava algo. Faltava entender de fato o que o movimento de câmera operado naquela sequência queria dizer. Não se faz necessário ver o filme inteiro para explicar o porquê daquele travelling ser abjeto, como diz o Rivette.

Em Kapò, a representação do campo de concentração é completamente bizarra, completamente banal (vendo aquilo você dificilmente vai acredita que aquele era o ambiente onde homens e mulheres chegavam à condição de Muselmann, os "muçulmanos", os mortos em vida – há um livro sobre a experiência nos campos chamado "É isto um homem?"). Mas a crítica ao travelling permanecia ainda mal compreendida por mim – o meu entendimento não me bastava. O movimento de câmera, naquela cena onde a moça se mata, enquanto um procedimento, aquilo era criticado por Rivette. E isso me escapava.

Bom, ao rever hoje a cena do assassinato cometido pelos jovens – que inclusive chegou de uma forma banal até mim – aquilo me fez entender um pouco melhor o que o Rivette estava dizendo em seu texto.

Os garotos matam e filmam de forma banal. É o absurdo. Ao encontrarem um desconhecido, o mataram sem motivo. "Mataram por matar". Mas na cena onde a câmera se aproxima para mostrar mais de perto o corpo, aquele movimento quer dizer algo. Além de matar o sujeito, eles vampirizam sua dor. Eles a transformam em pornografia. E o assassinato é todo filmado enquanto um filme pornográfico – a própria relação que eles têm com a câmera e com o ato deixa isto em evidência. Assim, o close operado é para o deleite mórbido de uma platéia de vampiros.

No travelling operado por Gillo Pontecorvo não é diferente. O reenquadramento e o close são para melhor mostrar o corpo dependurado no arame da moça que acaba se matar para espectadores-voyeurs.

Rivette, disseram me, pensava os limites do cinema; o que ele não deveria poder fazer. Ou seja, não os limites pensados no sentido da criação, mas dentro dos termos da moral. O que é moral e imoral; ético e não ético para o cinema.

Bom, fazer tal comparação me pareceu esclarecedora e necessária. Ainda mais hoje, onde tudo isso já foi naturalizado. Essa violência diante da dor dos outros é banal. Os comentários do youtube não mentem... E, percebam, já há filme feitos inteiramente sobre a vampirização da dor dos outro – como o documentário The Bridge. Onde tudo opera para que melhor se faça da dor o lugar do espetáculo sem limites.

Hoje, a imagem pode tudo. Rivette perdeu. E a questão de Daney permanece: será que os jovens, após a pornografia, a TV e publicidade, ainda podem se chocar com algo? E olha que ele nem mesmo alcançou a internet...

"Quando os ecologistas afirmam que a pergunta mais preocupante a se responder é: 'Qual será o mundo que deixaremos às nossas crianças ?', ele evitam de fazer esta outra questão, realmente inquietante: 'Que crianças deixaremos nós ao mundo?' " (Jaime Semprun).
Quando se assiste a uma gravação feita por uma câmera de segurança, é quase instintivo: as pessoas já se preparam, esperando por algum tipo de desgraça ou evento incomum.

Essa é basicamente a nossa única relação com as imagens indiferentes das câmeras de segurança.

Algo tem que acontecer, caso contrário não valem a atenção do olhar.

Duchamp: Escolho objetos indiferentes para fazer meus readymades, objetos industriais cuja o estilo, o design é da conta do indiferente para todo mundo. Não é feio nem bonito, apenas está lá para as pessoas usarem.

Warhol. Tornar aquilo que é desinteressante o centro do foco, da atenção – por muito tempo. Testa (?) o limite da atenção do olhar.

"Der Riese", Michael Klier: Imagens quase "desinteressantes", onde nada ou pouco acontece; ou onde apenas o esperado acontece. Seu acréscimo "cinematográfico" de música, insinua sobre um evento banal ares de espetáculo; onde algo incomum parece estar sempre prestes a acontecer.
Zizek em entrevista:

99% da esquerda endossa Fukuyama e o Fim da História.
Veja o que eles estão discutindo. Não há nenhum grande debate sobre coisas como o capitalismo está aqui para ficar? o que fazer? precisamos de um Estado?
Não. Há todo uma discussão de como tornar ele mais suportável, mais tolerante... um pouco melhor.

Em outro livro já havia dito algo como:

A hegemonia foi internalizadas pela esquerda que surgiu nos anos 70. Todas as novas lutas que surgiram – não que elas não tenham sua importância – foram abertas pelas perspectivas dadas pelo capitalismo: anti-racismo, feminismo, direitos dos animais, ecologia "and so on".

terça-feira, 13 de março de 2012

English Rebel Songs 1381–1984

English Rebel Songs 1381–1984 is a 1998 studio album by anarchist punk band Chumbawamba. It was originally released in 1988 with a slightly different tracklist as the re-release in 2003. Composed mostly of traditional English protest songs, the recording was a stark contrast to the group's previous punk recordings, pointing towards their future integration of choral and a cappella music, as well as a greater focus on harmonyin their musical sound.

Some of the songs come from Stand Together by Hackney and Islington music group, 100 Songs Of Toil byKarl Dallas, A Touch On The Times, and A Ballad History of England by Roy Palmer. Many of the songs are still performed by modern English folk bands such as The Houghton Weavers and Coope, Boys & Simpson.

The original LP recording (1988) was released on CD in 1994 by One Little Indian Records. Chumbawamba re-recorded the album (and modified the title) in 2003, adding two extra tracks, releasing it under their newly formed MUTT Records label.

(Wikipédia)


http://www.4shared.com/rar/CDYjpjDb/english_rebel_songs_1381_-_198.html?

segunda-feira, 26 de julho de 2010

A "Pós-Modernidade", o Poder, as Artes e a Cultura:

Ainda sobrou alguma coisa inteira?




Breve História da Corrida para o Século XXI

  A passagem para o século XX foi marcado, essencialmente, pela aceleração. Nunca se viu antes uma evolução científica tão rápida e fértil como nesse período, principalmente no pós-guerra*. “Coisas” que aumentam e aceleram qualquer produção em escala nunca antes vista, latas sobre rodas que correm mais que qualquer ser vivo, caixas ligadas a fios que permitem ouvir a voz de alguém distante,... Todas essas novidades alteraram a relação tempo/espaço drasticamente.
  A vida cotidiana não podia ficar intacta nesse processo, ainda mais com a introdução dessa mesma tecnologia no dia-a-dia em uma velocidade quase igual à da sua criação, não deixando tempo para uma reflexão crítica sobre a sua natureza e as suas implicações práticas na sociedade, ela simplesmente aparecia tomando a todos pela sua inércia.
  Esse impacto na vida média, ocorrendo principalmente nas grandes cidades (aliás, todos os caminhos levavam às grandes cidades), foi por demais sentido na forma de perceber o mundo. O tempo se tornará fugidio: a invenção do ponteiro dos minutos e posteriormente o dos segundos, é o sintoma mais primário. Em um novo mundo extremamente complexo e atado -literalmente preso- por relações de capital, requer, quando mobiliza forças e divide o trabalho (unilateralmente), planejamento extremo para potencializar a ação e maximizar o lucro. Ocorre a ascensão da “eficiência instrumental”, indiferente ao todo, às pessoas e à ética (criando sua própria antiética do capitalismo e do “trabalho”), buscando apenas ser eficiente. Mas muito nunca é o bastante, quanto mais rápido se está, mais rápido se quer ir. Se uma nova tecnologia possibilita a realização de uma tarefa em metade do tempo, será produzido o dobro.
  Invenções como o carro não só redefiniram a relação com o tempo, mas também com o espaço. Um dos componentes que contribuiu para as distâncias diminuírem foi o fato de terem sido criados caminhos físicos compatíveis com a nova velocidade: estradas, avenidas, linhas de trem, canais (algumas sem o planejamento adequado). Cidades inteiras se viram planejadas para tal, as ruas e as fábricas, os prédios e as esquinas não deixavam espaço para o lazer e os fluxos cortavam-na de ponta a ponta, alterando severamente a relação humana com o espaço público e particular. A rua se torna um espaço extremamente estranho, pois ela é feita para ser ocupado por apenas um breve momento de tempo (A semente da degradação do espaço público tem suas raízes aqui) e ficar no meio dela é perigoso e sentar na calçada atrapalha a locomoções dos outros.
A mudança logo se tornou a única constante na equação moderna. O que no “hoje” era normal e “bom” já seria ultrapassado e obsoleto no “amanhã” (com um leve empurrãozinho da propaganda, muitas vezes). Porém uma leve deturpação do “progresso” já ocorre nessa substituição do velho (ruim) pelo novo (bom). E como percebido pelo coletivo Critical Art Ensemble:
“Quando a tecnologia tenta tomar o lugar de algo não obsoleto,
pode-se ter quase certeza que está em operação uma estratégia de dependência”1

  E eles ainda continuam:

“Quanto mais tecnologia disponível para as pessoas, e quanto mais puder se insinuar nos algoritmos da vida cotidiana, maior a chance de que se torne um mercado de dependência”2

Um processo um tanto perverso: A implementação forçada da tecnologia no cotidiano, em uma relação de parasitismo (ou talvez de amensalismo-parasita, já que a tecnologia floresce em detrimento do homem).
O que acontece por inércia em um mundo desses é a fragmentação de tudo, da percepção humana, do conhecimento, das ciências e do próprio ser humano que se vê diante da cisão da sua vida pelas esferas públicas e particulares de uma forma extremamente radical. Ele conhece o isolamento das grandes cidades (onde culturas diversas se vêem lado a lado sem nunca se tocar, em seus "guetos"), o anonimato das multidões que não tem ligação pessoal alguma, a coisificação pelo trabalho e a exclusão pela economia. É interessante lembrar que o suicídio, a depressão e os distúrbios psicológicos se tornaram sintomático nesses tempos modernos de desilusões, frustrações e privações diárias. A esquizofrenia chega a ser simbólica.
  A fragmentação, conseqüentemente, deixa em xeque as certezas e as verdades. Como disse Nietzsche ainda no final do século XIX, não existiam mais verdades supremas. A ciência e as filosofias, não mais monopolizadas pelo estado ou pela igreja, se particionam, descobrem novos caminhos e questionam umas às outras. Partindo do mesmo sentimento agnóstico que ele, Henri Poincaré* postulou que, mesmo dentro das ciências, as certezas absolutas não existem. O entendimento total dos fenômenos não ocorre, de forma que a única "verdade" que se consegue alcançar são as relações entre estes, não se conhecendo nada fora disso.
  Logo, Deus e as instituições tradicionais começaram a ser liquefeitas pelo ceticismo da modernidade, sendo que o próprio significado e sentido da modernidade apontam para a destruição desses sólidos, das tradições, dos antigos valores, tanto pela evolução e (pela palavra que mais se ouviu nesse século) pelo progresso. O que pareceu um processo legítimo e natural para muitos entusiastas do antigo projeto iluminista, ocorreu de forma deturpada e manipulada, sendo encabeçada por tecnocratas e pelo capitalismo usando da “razão instrumental” (para usar um termo de Max Weber) para apenas mover a roda do capital. Esse processo sobrepunha as estatísticas em detrimento do ser humano, o lucro em desfavor da vida. Era a época da ascensão das grandes empresas e dos negócios, tomando conta das políticas dos rumos da sociedade, se estabelecendo no controle das decisões. O liberalismo econômico era questão de tempo.
   A cena do filme dos irmãos Lumière mostrando operários saindo da fábrica não era a norma quando foi feito, porém logo se tornou. As cidades foram inundadas com uma maré de pessoas, mais precisamente de operários, trabalhadores vindo de outras terras, com histórias, experiências e culturas diferentes, mas na massa nada disso contava, apenas o quanto cada um conseguia produzir por hora. A eficiência se tornou a base do que Gramsci chamou de fordismo, um sistema de produção em massa para um consumo também em massa, um ciclo que talvez vá destruir a si mesmo, e que não busca nada além de si mesmo. Como dizem por aí: ”capital gera mais capital”.
Tal ambiente foi extremamente fértil para a ascensão de regimes com forte apelo popular como o nazi-fascismo, o socialismo soviético e o populismo norte-americano. Todos queriam melhores direitos, vidas mais humanas, buscando promessas de melhores empregos, salários maiores e uma economia estável. As promessas de melhoras se baseavam todas na melhor distribuição das riquezas e na dinamização do sistema - todas sempre apoiadas no trabalho.
   Exatamente nessa época surgem os meios de comunicação em massa, o cinema e o rádio, a propaganda, todos voltados (desviados?) para legitimar o sistema econômico estranhamente chamado de natural – aquilo que destrói todas as alternativas possíveis e se comporta como um predador de toda a vida não pode ser “natural” – surge o que foi chamado de “espetáculo”: um mundo de imagens, onde as relações se dão e se criam por elas. Mesmos as experiências mais comuns não mais são vividas diretamente, são agora consumidas através dessa indústria que se encarrega do entretenimento, do lazer, do tempo fora do trabalho dessas pessoas, preenchendo o vazio emocional e existencial de suas vidas.
O processo que constituiu esse movimento acabou por juntar todos em cápsulas separadas, solitárias. A mesma realidade recortada é vista por todos. As mesmas idéias se tornam comuns. Ocorre um nivelamento massificante. O desejo incitado se torna compulsivo, idéias e visões ideológicas como self-made man e arbeit macht frei se efetivam. “Você é o que você compra” (ou o que você aparenta ser) e o sentimento do "único" (só você pode melhorar a sua vida, só você tem uma consciência crítica) se tornam verdades básicas. Tal lógica é fundamentada essencialmente na proposição de “o que é bom aparece, o que aparece é bom” (Guy Debord) 3.
A competição agressiva é alimentada nas cidades, o medo das revoltas em massa é “solucionado” dessa forma, pois, com bem disse Nicolau Sevcenko, ”numa metrópole tudo se insere em um sistema de controle”. Frases com “greed is good” ou “não existe essa coisa de sociedade, o que existem são indivíduos” (ambos de Margaret Thatcher) simbolizam bem isso. Essa lógica permitia culpar os indivíduos pelo seu “fracasso”, vítimas da própria falta de iniciativa e da inaptidão em se adaptar ao mercado de trabalho. A exclusão pela economia, a taxa natural de desemprego do capitalismo ou mesmo a concentração da renda por uns poucos eram questões que nem mesmo eram postas em dúvida.
   A desregulamentação dos mercados ocorre logo em seguida. A economia se torna o centro e o controle de tudo com a ascensão do consumo e a retração do estado. As grandes corporações chegam finalmente ao topo com o liberalismo econômico, onde os interesses dos acionistas e dos donos são sempre postos em primeiro plano. O “presentismo” e o lucro rápido perdem de vista os planejamentos á longo prazo. A resposta imediata é o que mais conta, investir para investir novamente, o mais rápido possível.
  Como as empresas podem ter “sua sede administrativa onde os impostos são menores, as unidades de produções onde  os salários são mais baixos, os capitais onde os juros são mais altos e seus executivos vivendo onde a qualidade de vida é mais elevada”4 a preocupação com a sociedade é nula, gerando efeitos como a marginalização, a violência pela exclusão, o declínio do espaço público e da convivência democrática.
A modernidade deixou a maioria das promessas no vazio.

Parte II: Os Herdeiros e os Malditos

Os grandes entusiastas (e os mais decepcionados) foram os artistas das várias vanguardas do século XX. Como o próprio nome diz,, avant garde, significa estar à frente, o batalha de frente que prepara o terreno para que depois todos possam seguir por lá. Tais movimentos eram uma resposta à demora do modernismo em cumprir suas promessas, eles se julgavam os condutores da nova sociedade, queriam ridicularizar o passado e tomar o lugar dos velhos cânones e idéias.
Mas a vanguarda possuía um elemento de autodestruição. Ser reconhecida e aceita era muitas vezes tido como fracasso, como não sendo radical o suficiente. Iniciasse (talvez inconscientemente) um processo de exclusão das massas, o que chega a ser contraditório, pois essa arte busca esclarecer ao mesmo tempo em que os tentava confundir e os agredir.
A arte moderna se distanciou tanto do povo que acabou se tornando um símbolo elitista, exclusivo para a elite. Boa parte da vanguarda encontrou seu fim na galeria e no mercado de arte, longe da “realidade social” e inofensiva.
A arte não utópica agora apenas quer existir, se juntar ao que existe. O ímpeto destruidor modernista se tornou um clichê, e qualquer um que o assume o faz mais por pose do que por real posição. No pós-modernismo, na modernidade líquida, os artistas se encontram em um movimento browniano, totalmente disperso e aleatório, não mais buscam serem seguidos por outros. A novidade não mais se liga ao revolucionário e a sua rejeição não mais é obscurantista. Como disse M. Foucault:
“A cada uma é concedida o direito á existência e
esse direito é sentido como uma igualdade de valor” 5
Como simplificou Pierre Boulez, maestro Frances: “Tudo é bom, nada é ruim, não há quaisquer valores e todos somos felizes” 6
A arte, aparentemente, encontra-se em um vazio, por lado ela busca uma nova linguagem que rompe com tudo sem se comunicar com nada. Alheia á realidade social, ela criou a sua própria, o simulacro, como disse Baudrillard, uma construção de um real sem qualquer paralelo com a realidade.
A busca incessante pelo novo parece ter estagnado a arte, bem como coloca Stewart Home:
“O grande problema com arte do século XXI é a demanda constante por algo novo e original. Como conseqüência, ao mesmo tempo em que tudo parece estar em estado de fluxo, nada realmente muda. Em vez disso, as mesmas idéias quase cruas constantemente reaparecem sob uma sucessão de novos nomes” 7
Com o esgotamento da linguagem, as grandes novidades tem se consolidado através da tecnologia, como em filme como “Timecode” (Dir. Mike Figgins, 2000) onde a tela fragmentada em quatro partes conta histórias acontecendo “simultaneamente em tempo real” sem cortes. Mas o melhor exemplo dessa nova vanguarda é “Avatar” (Dir. James Cameron, 2009) onde o único ponto atrativo do filme é sua nova tecnologia de exibição tridimensional, todo o resto é simplesmente um detalhe.
O grande processo de desmoralização das ciências humanas também tem grande impacto para a miséria da imaginação e da criação além da dependência da máquina e do esquecimento do passado. Ao longo do tempo vários casos de perseguição foram notados, como, por exemplo, Tertuliano que argumentava que a filosofia era nociva para a fé, ou Auguste Comte quando colocava a ciência acima da filosofia. Porém uma frase marcante é a de Mussolini quando este diz: “A filosofia é a ciência com a qual e sem a qual tudo fica tal e qual”. Quando esse tipo de pensamento sobe ao poder a pós a segunda guerra, idéias totalitárias de todo tipo, matérias como filosofia e sociologia são apagadas, as mentes são “burocratizadas”, a perseguição aos intelectuais de esquerda e aos artistas é algo irreal. A imaginação é quase que totalmente expulsa da “cultura séria”, se refugiando na contracultura, na juventude. A juventude de 68 tentou “levar a imaginação ao poder” (diferente de grupos como a Internacional Situacionista na França ou o Provos na Holanda que tentaram opor a imaginação ao poder), mas ambos foram esmagados e deixados de lado na história, que é sempre escrita pelos vencedores.
Em um recente encontro que tomei parte na sala de exibições do Itaú cultural, Júlio Bressane, que fazia parte da banca que se pós a discutir sobre a obra de Rogério Sganzerla, junto com Ignez Helena e Joel Pizzini, acusou a ditadura de operar processo de destruição da arte e da cultura. Foi como previu George Orwell, na obra “1984”, com novilingua, a pobreza do pensar se reflete na pobreza do agir.
Mais atualmente, com a falência das universidades, uma parte considerável de conhecimento tem sido produzida fora dela, por empresas particulares, este já nasce patenteado e preso a sua corporação (A lei da inovação tecnológica de outubro de 2005 incentiva tais práticas). Os ensinos particulares se tornaram fábricas de diplomas, fazendo o papel de um ensino de 3º grau do que de uma real faculdade. A técnica e a planilha aplicadas ao saber matam o espírito do intelecto. Mais uma vez a razão instrumental leva vantagem sobre a vida.

III: Buracos de Rato no Mapa, Resistência virtual e Plágio Cultural

Sociedades inteiras foram voltadas para o consumo e para o trabalho, tudo virou uma grande vitrine alimentada por máquinas de desejo e por processos de dependência em uma tela acelerada de TV. Quando ocorreu a revolução da microeletrônica, dos chips e da comunicação, uma quarta dimensão finalmente se efetivou, chegamos à “condição virtual”, como denominou o Critical Art Ensemble, uma realidade a parte ganhou corpo. A humanidade sempre possuiu o dom da abstração, o mundo das “idéias”, mas só no final do século XX que tal percepção se tornou “concreta”. Com a nova realidade virtual, os sistemas de controle, o poder e a economia passaram para esse plano de forma radical. Uma ordem ou ação pode ser comandada á distância, com o emissor localizado em qualquer lugar. A idéia do panóptico havia sido superada, a presença física não é mais requerida para a vigilância.
Ações como passeatas, ocupações ou greves lutam agora com casamatas vazias, com monumentos ocos. O poder não se encontra em nenhum desses lugares, e a mídia mainstream pode simplesmente ocultar tais atos.
Como disse Hakim Bey, nunca vai haver um mapa sem falhas, rachaduras e pontos cegos, apenas um mapa de escala 1:1 seria totalmente fiel ao real, sendo este possível apenas para a mente humana. Aqui reside à primeira forma de resistência, aproveitar as manchas negras antes que o mapa se atualize.
Critical Art Ensemble pergunta: “Como se pode avaliar criticamente um objeto que não pode ser localizado, examinado ou sequer visto?” 8
O poder e a vigilância se tornaram nômades, assim deverá ser a resistência. Um novo campo de ação é requerido: o virtual. Dados também podem ser atacados, bloqueios e distúrbios eletrônicos causam repercussões reais. A “cultura do policial” também invade as novas mídias, o que será das crianças? Rambozo, o palhaço nas telas globais.
A informação na era líquida virtual tende a ser pouco confiável. Pilhas de informações inúteis se sobrepõem às úteis. Ela acaba sendo consumida desigualmente, quem sabe transitar e aonde ir tem vantagens sobre aqueles chamados de “analfabetos digitais”. Porém, mesmo assim, em uma era de fragmentação do tempo e do espaço, comprovar verdadeiramente que algo é verdadeiro ou falso é muito difícil. A mídia mainstream muitas vezes aproveita desse aspecto, além é claro, do seu poder de pautar o que será discutido e quais pontos de vista serão priorizados. A mídia alternativa deve existir e ser sempre preferível. As mídias devem ser descentralizadas.
Dados na rede, guerra de informações, propaganda negra, nomes múltiplos, tudo é válido. O humor exercerá um papel importante aqui, como disse Emma Goldman: “Se eu não puder dançar, não será minha revolução” E na fala de George Bataille: ”O mundo só é habitável com a condição de nada nele ser respeitável”.
A arte deve e a cultura devem superar a propriedade intelectual, que foi criada só para beneficiar editores no século XXI. A cultura burguesa do “único” e o mito do gênio até agora se mostraram interessadas apenas em lucrar. Uma obra não tem significado algum se considerar todos os outros que vieram antes, a cultura é um processo. Criações só são úteis quando interagem com outras, como disse Isaac Newton: “Eu só pude ver mais longe por estar de pé no ombro de gigantes.”
A retórica do “único” tende a se basear apenas na suposta falta de talento e no “oportunismo” de quem prática o plágio, (não era Shakespeare o maior de todos eles?). Os cinco do Critical Art Ensemble afirmam (com toda razão):
“explorar as possibilidades de significado naquilo que já existe é mais premente do que acrescentar informações redundantes”. 9
E continuam:
“Uma obra de arte ou filosofia não se esgota em si mesma” 10
Terminando com:
“Um dos principais objetivos do plagiador é restaurar o fluxo dinâmico e instável do significado, apropriando-se de fragmentos da cultura e os recombinando” 11
   Esse texto todo é uma grande colagem de pensamentos de outros e reinterpretações minhas da obras de outros. O plágio é necessário. O progresso implica nisso.

Em suma, os velhos caminhos estão fechados e a palavra “revolução!” se tornou uma armadilha. Mas o fim das “idéias boas”, das aspirações pela sua realização e pelas coisas boas só podem acabar junto com o fim do mundo.

Que assim seja se assim quisermos que as idéias se tornem perigosas novamente.

NOTAS
1 CRITICAL Art Ensemble. Distúrbio eletrônico pág. 133 – Coleção Baderna São Paulo: Conrad 2003
2 idem pág. 131

3 DEBORD, Guy A sociedade do espetáculo editora contraponto, São Paulo 1997
4 SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI pág. 32 – coleção Virando séculos, São Paulo: Companhia das letras 2001

5 FOUCAULT, Michel citado por Zygmunt, Bauman, no capítulo “A impossibilidade da vanguarda” em O Mal Estar da Pós-Modernidade. Jorge Zahar, São Paulo 1998

6 BOULEZ, Pierre citado por Zygmunt, Bauman, no capítulo “A impossibilidade da vanguarda” em O Mal Estar da Pós-Modernidade. Jorge Zahar, São Paulo 1998

7 Home, Stewart A Greve da arte/manifestos neoístas Conrad, São Paulo 2004
8 CRITICAL Art Ensemble. Distúrbio eletrônico pág. 27 – Coleção Baderna São Paulo: Conrad 2003

9 idem pág. 84

10 idem pág. 85

11 idem pág. 86



BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

BAUMAN, Zygmunt Capítulos 8 e 9 de O Mal Estar da Pós-Modernidade, Zahar, São Paulo 1998

CRITICAL ART ENSEMBLE, Distúrbio Eletrônico Coleção Baderna São Paulo: Conrad 2003

DEBORD, Guy A sociedade do espetáculo editora contraponto, São Paulo 1997
SEVCENKO, Nicolau A corrida para o século XXI coleção Virando séculos, São Paulo: Companhia das letras 2001
REVISTA Cult edição 138 3/08/2009 Dossiê: O conflito das universidades

Documentários

THE CORPORATION, direção: Mark Achbar e Jennifer Abbott 2003, Canadá

SURPLUS,TERRORIZED INTO BEING CONSUMERS, direção: Erik Gandini eJohan Söderberg 2003, Suécia

sexta-feira, 16 de abril de 2010

1
"Não consigo entender por que as pessoas têm
medo das novas idéias. Eu tenho medo das velhas."

John Cage


Avant- garde, vanguarda significa estar à frente, posto avançado, uma unidade que vai abrir caminho por entre um terreno que será ocupado posteriormente por todos. Porém hoje já não se consegue classificar algo como vanguardista ou retrógrado. Está tudo disperso, aleatório, acontecendo dentro de um movimento browniano, e de um modo pelo qual todas as empreitadas -que são em sua totalidade ações praticamente individuais- para a criação de novas obras e/ou caminhos não cheguem a lugar nenhum.
Tudo encontra-se ao mesmo tempo em movimento e ao mesmo tempo estagnado: “mudanças fragmentárias não indicam corrente unificada; e a totalidade não sairia de onde está”(Bauman).

Os estilos então não se dividem mais em retrógrado ou progressista, não buscam mais substituir o antigo, o canônico o acadêmico, buscam apenas se juntar ao que já existe.
”Num cenário em que a sincronia toma o lugar da diacronia, a co-presença toma o lugar da sucessão e o presente perpétuo toma o lugar da história, a competição domina desde as cruzadas” (Bauman).
A lógica agora da novidade se dá por:“Máximo impacto e obsolescência imediata” (George Steiner citado por Bauman) e a rejeição da novidade já não é algo que se liga ao reacionário –muito pelo contrário, em muitos casos.


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"Não sabemos mais fazer do tédio
algo proveitoso e fértil".

Como disse Bauman acerca da constante tentativa da arte moderna de não se tornar obsoleta e parar de causar o sentimento de repulsa e o incomodo na sociedade: “Aguilhoada pelo horror da aprovação popular, a vanguarda febrilmente sempre encontrava mais difíceis (por isso, possivelmente menos digeríveis) formas artísticas.” Isso acabou dividindo o público em duas classes: a que pode compreender e a que não pode. A arte foi então elitizada, mesmo que acidentalmente, excluindo-se da compreensão e da realidade das massas.
Porém, o mercado logo viu o poder dessas obras e a vanguarda foi incorporada - não por aqueles que compartilhavam de suas ânsias revolucionárias, iconoclastas e cheias do espírito moderno da mudança, mas sim por aqueles que queriam se “aquecer-se na glória refletida do recôndito, exclusivo e elitista.”(Bauman)
A arte se afastou totalmente das massas e um “tédio quase universal que se abate sobre a maioria das pessoas na simples menção da palavra "arte" “ (H. bey).
E com a “falta de tempo”, a crise na formação dos indivíduos e as sociedades inteiras voltadas para o consumo e para o trabalho, parece que nossa imaginação se esvaiu.