terça-feira, 26 de novembro de 2013

Travelling de Kapò?

Me reencontrei hoje com uma "cena abjeta".

Há um vídeo famoso onde três jovens matam um homem de maneira brutal – e é filmado pelos próprios!

Bom, vou me deter a um momento do vídeo:

Após o desferimento de um golpe violento contra o corpo agonizante da vítima o "cameraman" reenquadra em close o corpo mutilado.


Bom, eu sempre tive alguma dificuldade para explicar a questão do travelling dessa cena – apesar de concordar inteiramente com a crítica feita aos "parques de diversão do holocausto", às "colônias de férias-campo de concentração". Ou seja, a crítica da representação banal, leviana, suportável dos holocausto – o insuportável.

Mas, faltava algo. Faltava entender de fato o que o movimento de câmera operado naquela sequência queria dizer. Não se faz necessário ver o filme inteiro para explicar o porquê daquele travelling ser abjeto, como diz o Rivette.

Em Kapò, a representação do campo de concentração é completamente bizarra, completamente banal (vendo aquilo você dificilmente vai acredita que aquele era o ambiente onde homens e mulheres chegavam à condição de Muselmann, os "muçulmanos", os mortos em vida – há um livro sobre a experiência nos campos chamado "É isto um homem?"). Mas a crítica ao travelling permanecia ainda mal compreendida por mim – o meu entendimento não me bastava. O movimento de câmera, naquela cena onde a moça se mata, enquanto um procedimento, aquilo era criticado por Rivette. E isso me escapava.

Bom, ao rever hoje a cena do assassinato cometido pelos jovens – que inclusive chegou de uma forma banal até mim – aquilo me fez entender um pouco melhor o que o Rivette estava dizendo em seu texto.

Os garotos matam e filmam de forma banal. É o absurdo. Ao encontrarem um desconhecido, o mataram sem motivo. "Mataram por matar". Mas na cena onde a câmera se aproxima para mostrar mais de perto o corpo, aquele movimento quer dizer algo. Além de matar o sujeito, eles vampirizam sua dor. Eles a transformam em pornografia. E o assassinato é todo filmado enquanto um filme pornográfico – a própria relação que eles têm com a câmera e com o ato deixa isto em evidência. Assim, o close operado é para o deleite mórbido de uma platéia de vampiros.

No travelling operado por Gillo Pontecorvo não é diferente. O reenquadramento e o close são para melhor mostrar o corpo dependurado no arame da moça que acaba se matar para espectadores-voyeurs.

Rivette, disseram me, pensava os limites do cinema; o que ele não deveria poder fazer. Ou seja, não os limites pensados no sentido da criação, mas dentro dos termos da moral. O que é moral e imoral; ético e não ético para o cinema.

Bom, fazer tal comparação me pareceu esclarecedora e necessária. Ainda mais hoje, onde tudo isso já foi naturalizado. Essa violência diante da dor dos outros é banal. Os comentários do youtube não mentem... E, percebam, já há filme feitos inteiramente sobre a vampirização da dor dos outro – como o documentário The Bridge. Onde tudo opera para que melhor se faça da dor o lugar do espetáculo sem limites.

Hoje, a imagem pode tudo. Rivette perdeu. E a questão de Daney permanece: será que os jovens, após a pornografia, a TV e publicidade, ainda podem se chocar com algo? E olha que ele nem mesmo alcançou a internet...

"Quando os ecologistas afirmam que a pergunta mais preocupante a se responder é: 'Qual será o mundo que deixaremos às nossas crianças ?', ele evitam de fazer esta outra questão, realmente inquietante: 'Que crianças deixaremos nós ao mundo?' " (Jaime Semprun).

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