sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Sobre "Via Sacra".

Sobre "Via Sacra"  "Via Crucis"


Entre os comentários sobre o filme feitos depois da exibição, devo me limitar aqui a discorrer sobre aqueles referentes à Máscara.

Foi dito que a Máscara seria o rosto que exprime o horror diante de uma cidade desumana, o gesto de recusa diante da miséria e do deserto que, sob todos os aspectos, constituiriam São Paulo até mesmo nos seus mínimos detalhes.
Ainda, que seria o Coro comentador que se silencia em horror – o que não deixa de ser um comentário.
A aparição da Máscara demarcaria blocos dentro do filme, respondendo com a mesma expressão de horror diante das diversas faces abjetas da cidade. Foi dito que sua expressão muda conforme ao que ela reage, isto é, a percebemos de forma diferente em conformidade com o que foi exposto à nos anteriormente (as ocupações irregulares, os prédios ainda em construção, os condomínios de luxo, ...). O mítico "Efeito Kuleshov" foi citado.

Defenderei outra interpretação aqui.

Desde a primeira aparição, não percebi a Máscara como uma face humana expressando o horror, mas sim como a própria face do Horror, isto é, o Horror encarnado. Possivelmente isso se deve aos próprios traços da Máscara, com suas orelhas pontudas, mas também pela própria maneira como ela é concebida: uma face horrível e imóvel que, enquanto máscara, esconde algo – ou que "nomeia o inominável", tornando possível para nós, seres humanos mortais, olhar para algo que de outra forma nos provocaria uma visão insuportável, ou apenas impossível de ver com nossos limitados "cinco sentidos".
E, dado o aparecimento repetido da mesma face com a mesma expressão, excluo a ideia do "comentário ao horror" pelo fato de que seria um horror equivalente. O filme rejeitaria, dessa forma, em mesmo grau, gênero e número os diversos aspectos da cidade. Mas, estando as diversas facetas da cidade trabalhadas e discriminadas, entendo como ilógico (seguindo o percurso discursivo do filme) dizer que a Máscara viria para igualar tudo aquilo mostrado (ou denuncia) pela ordenação das imagens, como também pelo som, sob um mesmo gesto. A lógica da equivalência é a lógica da mercadoria. Quando tudo pode ser medido e pesado para, abstratamente, se equivaler, os diversos detalhes são perdidos em prol da obtenção de um valor; tem se então uma simples comparação quantitativa e não qualitativa. E eu não vejo essa tentativa de recusa da cidade de forma tão hegemônica – apesar de isto poder ser dito, em alguns momentos, quando levado para pensar a constituição dos blocos menores do filme (por exemplo, quando a imagem da ocupação de um prédio é exibida logo antes da imagem de uma ocupação irregular e de uma abrigo construído embaixo de uma ponte).
Assim, a Máscara apareceria como o ponto onde tudo se encontra, como aquilo que está sempre presente mesmo nos mais variados aspectos da cidade; como aquilo que está por trás de tudo – alguém poderia dizer o sentido por trás de tudo. Assim, isso ressaltaria o caráter da Máscara enquanto máscara da cidade: a face concretamente representável de todo o Horror. A máscara é a face do demônio que a cidade verdadeiramente é. (Não quero aqui dizer que o documentário demoniza a cidade – na pior acepção deste termo. A cidade não é "malvada", a cidade é um grande organismo que desumaniza e se vale do sacrífica dos seus servos para funcionar e para se constituir).

Ginsberg conta que quando estava escrevendo a segunda parte de seu poema "O Uivo", estando sob o efeito de alucinógenos, ele viu a face de Moloch, o antigo deus pagão que sempre requeria sacrifícios humanos em seus rituais para apaziguar sua ira, no prédio de escritório que ficava de frente para seu apartamento.

trecho:

What sphinx of cement and aluminium bashed open their skulls and ate up their brains and imagination?

Moloch! Solitude! Filth! Ugliness! Ashcans and unobtainable dollars! Children screaming under the stairways! Boys sobbing in armies! Old men weeping in the parks!

Moloch! Moloch! Nightmare of Moloch! Moloch the loveless! Mental Moloch! Moloch the heavy judger of men!

Moloch the incomprehensible prison! Moloch the crossbone soulless jailhouse and Congress of sorrows! Moloch whose buildings are judgement! Moloch the vast stone of war! Moloch the stunned governments!

Moloch whose mind is pure machinery! Moloch whose blood is running money! Moloch whose fingers are ten armies! Moloch whose breast is a cannibal dynamo! Moloch whose ear is a smoking tomb!

Moloch whose eyes are a thousand blind windows! Moloch whose skyscrapers stand in the long streets like endless Jehovas! Moloch whose factories dream and choke in the fog! Moloch whose smokestacks and antennae crown the cities!

(...)

E de forma parecida como a representada por Ginsberg, a Máscara é esse deus demiurgo que acolhe todos os diversos aspectos do Horror sob uma mesma face. Aquele que não traz nada a não ser a destruição e a miséria, a morte e o sofrimento. Aquele que requer os mais altos sacrifícios em troca da suas calmaria temporária.

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